Foi até criado um mercado especial para venda de muletas de todas as espécies e marcas. Umas azuis, outras rosas e também as multicoloridas. Tinha muleta para todos os gostos e tamanhos. As mini-muletas serviam aos pequenos infantes e as mais “radicais” eram destinadas aos mais jovens que as exibiam com fitas multicores nas praças.
Tudo era correto naquela comunidade. Até que um dia surgiu um discordante.
Um jovem começou a questionar a existência das muletas. Dizia aos quatro cantos que se o homem quisesse poderia firmar-se com seus próprios pés e pernas.
Por causa disso passou a ser perseguido e até ameaçado de morte. Onde já se viu, diziam os mais velhos, um jovem com tamanha soberba! Sua família também passou a sofrer pressão por parte dos demais e seu pai não teve alternativa e o expulsou de casa.O jovem pensou até em abandonar essa comunidade atrasada, segundo dizia, mas não pode fazê-lo uma vez que seu pai, muito feroz, tirou-lhe a muleta que havia lhe dado de presente de aniversário. Dessa forma, ele poderia apenas arrastar-se alguns metros, ficando sujeito a humilhação e fadado a morte lenta. Sem as muletas muitos condenados lançavam-se à morte, pois já não eram considerados mais integrantes da comunidade. Eram os excluídos sem direito a honra sequer. Todos os desprezavam. Eram considerados “vermes que se arrastam em busca de compaixão”.
Neste momento de extrema dor e angustia, o jovem ergueu os olhos para o firmamento e bradou com todas suas forças a ajuda dos céus. Num esforço descomunal ergueu-se do solo e tentou ficar de pé sem qualquer auxílio.
Segurando em uma árvore, foi se erguendo e a cada milímetro que se afastava do chão, mais sua fé crescia. Mantendo os olhos vivos e fitando o azul do céu, ergueu-se. Seu esforço incomum havia chamado a atenção dos transeuntes que, encostando suas muletas, pararam para apreciar a loucura desse abandonado.
Mesmo sob os olhares atentos e incrédulos dos demais, o jovem ergueu-se...ficou de pé. A façanha durou, no entanto, poucos segundos, pois devido a fragilidade de suas pernas, antes habituada a muletas, veio ao solo, diante da gargalhada de todos. Uma bondosa senhora aproximou-se e lhe ofereceu uma bengala. Com isso, disse ela, você poderá caminhar até que possa novamente adquirir um novo par de muletas. O jovem agradeceu, mas não aceitou a oferta e, mais uma vez, reiniciou sua tentativa. Ele sabia que, uma vez tomada uma atitude e quando está alicerçada pela fé e pelo conhecimento, não se deve voltar atrás. E ele queria provar que é possível a vida emas muletas e mais uma vez tentou. Pernas tremulas e fracas eram sacrificadas em nome de uma causa: a liberdade para caminhar rumo a um ideal. Mesmo que fosse um ideal solitário, mas um ideal.
E, ele tentou uma, duas, três, dezenas de vezes Após repetidas tentativas o jovem já se tornara alvo de riso de toda a comunidade. Todos que passavam queriam parar para vê-lo. Entre estes, eis que surgiu uma criança e percebendo que o rapaz estava sem as muletas, tentando ficar em pé, passou a imitá-lo. Seu irmão mais jovem também aderiu a brincadeira. E assim ocorreu com seus primos e demais amigos. Brincando foram repetindo o esforço do jovem.
Para os antigos, com a adesão das crianças, a diversão ganhou dimensão maior ainda. O frenesi era tamanho que quando foram se dar conta, todas as crianças estavam caminhando sem as muletas. Brincavam, dançavam e pulavam alegres quando, menos esperavam, o jovem radiante cheio de vida veio juntar-se a elas...sem as muletas.
"A liberdade individual pode encontrar obstáculos frente às forças sociais que exercem pressão sobre o novo, sobre o inusitado. No entanto, seu valor não pode sucumbir aos ditames sociais e nem entregues a paixões que tendem a se tornar hábitos".
Doni Romon